Maluco por trem
Há “maluco
por trem” por toda parte. Há quem se especialize em partes distintas, e há quem
seja apaixonado pelo pacote completo. Acompanhe um desses.
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É dia de
movimento intenso nas rodovias, e muitos “tipos” vão ao volante. Um destes nos
dará uma situação inusitada.
Vai indo já
bem longe de casa com esposa e filhos. Viaja por um de nossos relevos serranos e
vai visitar parentes que se mudaram para uma outra cidade. É a primeira vez que
dirige nesta estrada. Nosso amigo é um motorista exemplar destes que não falam
ao celular enquanto dirige e faz questão de cinto para os passageiros do banco
traseiro. Então, vai conduzindo seu veículo de olhos atentos... O incomum, é que
está atento não só à estrada; tem um segredo. Procura algo mais na inédita
paisagem.
A viagem
transcorre normal, mas ele “tira o pé” quando começam a aparecer em alguns
pontos ao lado da rodovia, postes com fiações, cortes em barrancos, aterros,
pontilhões, pontes de ferro, sinistros semáforos indecifráveis. Enfim, indícios
do que já esperava secretamente, uma Estrada-de-ferro. Sabia da
existência dela; de seu zig-zag com a rodovia que viria a percorrer. É um
“bitolado” por locomotiva, um “maluco por trem” e quer avistar um. Quer ver um
comboio ferroviário; seu coração pede isto.
Também não quer perder lance algum da
Estrada-de-ferro, que hora está de um lado, ora do outro da sinuosa rodovia. Sua
atenção fica então distribuída em 70% para prestar atenção à movimentada
rodovia, e 30% à paisagem ao lado, a perscrutar o caminho dos trens.
Seu carro vai
rodando e descortinando novos visuais a cada morro galgado, a cada curva feita,
enquanto rodovia e ferrovia ora aproximam-se ora afastam-se em longos arcos,
como que combinado entre elas. O fato oferece assim, a quem trafega na rodovia,
lances só momentâneos da ferrovia; A maior parte é naturalmente camuflada pelo
relevo acidentado e pela vegetação. Mas não ao nosso amigo “bitolado”; Tudo lhe
é perceptível, mesmo dirigindo. Ele então vê um imponente pontilhão passar de
relance, e lembra da máquina fotográfica; “marca” então o local para a volta. Em
outro ponto enxerga claramente a via férrea, com os dormentes, o lastro, os
trilhos polidos, brilhando. Sinal de muito uso; de muitos trens. Ele entende
então, que a qualquer momento surgirá um trem ao lado ou à frente, e tem
consigo, a necessidade de “contemplá-lo”. Sabe porem, que na velocidade que
trafega, já não pode se distrair mais da estrada, então tira mais a velocidade
do automóvel e começa a ser ultrapassado por todos.
A “patroa”,
ao lado, que percebe tudo e o conhece melhor do que ninguém, em modo de
advertência, pergunta:
- É por causa
do trem! Não é?
Sentido-se
dispensado de precisar responder, ele que também a conhece, tirou daquela
“mensagem” um fato: Ela já vira um trem à frente, enquanto ele, devido a
“atenção” ao volante, ainda não, e portanto a qualquer momento o verá também. Os
batimentos cardíacos aumentam e ele torce para que apareça logo um local
que possa parar o carro. Local que lhe ofereça uma visão adequada, coincidindo
com a passagem do trem.
O carro vai
rodando e em dado momento, a patroa senta-se quase que de frente pra ele;
analisando-o. Ele conclui, “está próximo o trem!”, o que faz com que sua atenção
agora fique distribuída em metade para a auto-estrada – onde se iniciava uma
lombada – e a outra metade para a ferrovia. Já está decidido a parar o carro,
torce apenas por condições favoráveis; por um jeito de estacionar a tempo. Nova
advertência dela, olhando-o de frente:
- Cuidado,
senão eu desço com as crianças e tomo um ônibus!
Ele, passa a
ostentar trejeitos estranhos, enquanto o carro toma o topo da lombada. Vê então,
à frente, um túnel da ferrovia. Daqueles com paredes pretejadas em sua
embocadura. Balança a cabeça em espécie de negação inconformada; Inconformismo
por não poder naquele instante ir sei lá, talvez, transpô-lo a pé, respirando
profundamente o ar do seu interior. Olha mais à frente e enxerga, prestes a
entrar no túnel, o esperado comboio ferroviário. Vê o grupo de imponentes
locomotivas Diesel-elétricas, envolvidas em sua fumaceira. Acelera o carro
indo-lhes ao encontro antes que adentrem o túnel. Chega ao ponto possível e
desacelera. Joga subitamente o volante para o acostamento que naquele ponto
tendo um degrau, assusta todo mundo. Para o automóvel, dá um salto para fora e
vai olhar fixamente o comboio a entrar no túnel. Perde-se entre a fumaça deixada
pelos motores, que reluta contra o arrasto provocado pelo deslocamento dos
vagões e a tentativa infrutífera de ler e memorizar o número de um vagão sequer.
Ali permanece, até a transposição total da composição empoeirada de minério,
enquanto dentro do carro as crianças fazem sua algazarra que ali se tornou
permitida, por forças das circunstâncias. Acaba o “espetáculo”, e ele lamentando
não ter visto nitidamente cada locomotiva, volta ao seu carro e... Surpresa!
Teve que se sentar agora no banco do passageiro. A patroa tomou-lhe o volante,
esclarecendo:
- Já vi que
esta linha de trem não vai sair daí!
Consciencioso, ele atende, e a viagem prossegue sem mais contratempos. Agora
nosso amigo segue com atenção invertida. Destina 70% para a paisagem, a procurar
os trilhos, e 30% são destinados a vigiar a auto-estrada. Se acaso avistar
próximo à rodovia uma estação ferroviária, um trem parado, ou mesmo uma velha
caixa d’água de abastecimento das antigas “vaporentas”, sua viagem sofrerá mais
atrasos.
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É o “maluco por trem”. É o cara que gosta de ver os trilhos, pregados a
dormentes. É o sujeito que se sente atraído pela ferrovia; por seus barulhos e
equipamentos. É o “ferroviarista”.
O termo “ferroviarista” não diz respeito a uma profissão. O ferroviarista ganha
a vida em outras atividades, que nada tem a ver com estradas-de-ferro. Pode
existir, no entanto, o ferroviarista que o destino lhe lançou à feliz condição
de ser ferroviário por profissão.
A condição de ser ferroviarista, do mesmo modo que a condição de ser
ferroviário, nada tem hereditário; Não obedece a nenhum tipo de “linhagem”.
O ferroviarista é vários. Há “N” maneiras de ser ferroviarista.
Há aqueles em que, em sua vida, se torna comum, fazer visitas – num “domingaço”
– a algum pátio de manobras ou estação ferroviária próximos – às vezes nem tanto
– de sua casa. Ele fica a observar atentamente as manobras, nem de muito perto
nem de muito longe. Mantém no rosto um ar abobalhado, meio receoso que esteja
incomodando e teme que a qualquer momento alguém vai vir e pedir que se retire.
Sabe que às vezes é encarado como “meio doido”, mas não se importa. Sua câmara
fotográfica dentro da mochila, aguarda um melhor momento para umas fotografias
dos velhos e encardidos comboios e sabe ele que este momento pode não chegar
desta vez, porque sabe que outrora, teria havido retenção de câmeras; de filmes.
Por não saber se existe uma linha nítida separando passado e presente, não
arrisca. Vai embora com o filme em branco, omitindo assim um valoroso “recado” à
posteridade. Mas tudo vale, ele é persistente e voltará em intervalos regulares.
Vai feliz ainda, pois leva na memória, o barulho “arrastado” das timonerias de
freio dos vagões; do motor das locomotivas. Voltará, pois identificações
amigáveis começaram a acontecer. Com o tempo fará amizade com alguns
ferroviários e poderá tirar suas duvidas com relação àquela parte da ferrovia e
de quebra conseguirá algumas boas fotos com a ajuda destes. Com um pouco de
sorte encontrará um ferroviário ferroviarista, aí sim, se sentirá “em casa”
mesmo.
Há ferroviaristas que querem saber coisas simples como o que transporta e para
onde vai os vagões, ou como funciona a locomotiva. Consegue de ferroviários,
alguma destas “informações”, ainda que a boca-pequena. Outros, ao contrário, são
verdadeiros especialistas em detalhes diversos sobre locomotivas e vagões, a
ponto de surpreender os próprios ferroviários. Há também os inventores de
secretas “soluções” tecnológicas para a ferrovia, que em seu íntimo trocariam
qualquer “patente” sua por uma vaga nos quadros da ferrovia.
O ferroviário por sua vez, conhece mais destes tipos. Está acostumado com aquele
vizinho que embute perguntas sobre a ferrovia nas conversas corriqueiras. Já
sabe até o momento em que o dono da venda vai lhe perguntar o “por que”, de
estar passando pouco (ou muito) trem.
É fácil sempre de se reconhecer ferroviaristas; por seus hábitos. São aqueles
motoristas que nas passagens de nível nunca se apressam em passar logo correndo
a frente do trem, pelo contrário, encostam antes o carro, e nos braços elevam os
pequenos (em alguns casos ferroviaristas mirins), garantindo-lhes também boa
visão.
A alguns ferroviaristas, se torna comum “atrasar” sua viagem de passeio ao fazer
uma parada no acostamento das auto-estradas para ver passar o comboio
ferroviário. Se não puder saltar pra fora do carro, abaixa correndo o rádio para
escutar o roncado do motor das locomotivas e aquele repetido “teleco-teco” das
rodas dos vagões batendo nalguma junta dos trilhos. Não que lhe seja raro ver
trens ou ao menos algum “caminho de trem”, ativo ou não. Afinal em nosso país,
pontilhões, túneis, estações e todo o aparato duma ferrovia, desativada ou ativa
sempre estão por toda parte. Porem muito do que empolga o ferroviarista, é o
fator novidade. Ele procura as diferenças que há nos equipamentos ferroviários
de uma ferrovia para outra. Diferença que no caso brasileiro é de extensa a
lista. Ele quer ver, conhecer e guardar na memória esta pluralidade dos trens e
contemplar a magia de todo caminho destinado a eles.
Há apegos individuais a este ou aquele “item” da ferrovia, o que ao final acaba
por se formar grupos distintos. Por exemplo, é grande o número de
ferro-modelistas e construtores de “maquetes”, o hobby que permite ao
ferroviarista, criar sua própria “ferrovia”, com simulacro de linhas, trens e
estações em miniaturas. Acrescentam ainda, tudo que seja adjacente à estrada de
ferro. Estes estão sempre atentos a cada detalhe ínfimo na estrutura ou pintura
desta ou daquela locomotiva ou vagão de verdade, o qual copiam nos pequenos
modelos. Após tudo montado, fica formado um micro-ambiente ferroviário que com
certeza, encanta até mesmo o mais despercebido e alheio das causas ferroviárias.
Há os que recorrem também a filmagens amadoras de trens e trens, às vezes
deixando que passem pelas lentes, centenas de metros de um mesmo cargueiro em
sua velocidade real. Fato que traz a muitos ferroviaristas de “freqüência”
diferente, estes, convidados a ver o filme, uma carga de sono extra, que se
descobre depois, tem mesmo a capacidade de corrigir insônia.
O valor e “encanto” de uma cidade para o ferroviarista é medido pela presença ou
não de uma estrada-de-ferro. Em seu íntimo ele pensa em “defender a tese” de que
desde outrora, nas cidades com a presença do trem, mesmo só os trens cargueiros,
há em média mais cidadãos alegres e sorridentes em relação às cidades sem trem.
Os cidadãos “com trem” seriam “motivados” não só pela simples visão das
composições, mas também por na alta noite, hora de ir para a cama, escutar vindo
lá da subida, ao longe, o ronco “sonolento” do trem.
Há aquele que, quando pela primeira vez numa cidade, o primeiro endereço que
procura, é o da estação ferroviária... Veja bem! Mesmo que nela já não passe
mais trem algum. Mesmo ainda, que já não tenha mais trilhos. Vai afoito pelo
caminho, já procurando vestígios do antigo leito férreo; Vai como se tivesse nas
mãos um mapa de tesouro. Quando enxerga o objeto de seu desejo, a estação, é
mais ou menos como se enxergasse o esperado “X” desenhado numa pedra.
Se acaso de volta à cidade da infância, uma destas que já perderam o trem, vai,
depois do almoço da tia, levando esposa e filhos, garantindo-lhes um programa
diferente, andar pelo antigo leito da linha com seus pontilhões agora destinados
a automóveis. Uma vez na plataforma da velha estação (ou das ruínas), olha na
direção de onde antes surgia o trem que acabou talvez antes que ele próprio
tivesse nascido, e da azas a imaginação. Os passos curtos, o silêncio absoluto
que o acomete, a indiferença aos apelos de “ir embora”, a posterior não
percepção de que ficara sozinho, significam que ele o está vendo resfolegante, a
surgir por detrás do morro, como um dia foi.
Quando chega aos lugares que já perderam o trem, o ferroviarista quer dos
moradores, informação. Quer ouvir as estórias, os “causos” de quando passavam os
trens. Uma velha fotografia do ambiente ferroviário, retirada do fundo de malas
esquecidas, o levará a certo estado de torpor e tentará levá-la consigo. Se
acaso encontrar um ex-ferroviário ancião então, saí da frente; Este terá
companhia em boa parte do dia.
Há os apaixonados por trem que não se expõem muito. Mas seus ouvidos estão
sempre antenados para os lados da estrada-de-ferro; de noite e de dia.
Em geral o ferroviarista procura se informar melhor sobre ferrovias e logo se
desfaz daquelas correlatas confusões e chavões tão comuns do universo
ferroviário, como aquela que diz – ou dizia – que o “trem bala” japonês corre
por sobre um só trilho. Assegura-se então de que este e também os trens europeus
de alta velocidade “voam” mesmo, é sobre trilhos comuns.
O ferroviarista sabe da história do médico que escreveu um livro confessando seu
sonho se tornar um maquinista de trem; se orgulha dela.
Há o ferroviarista saudosista. O que quer, por que quer, novamente viajar nos
antigos trens passageiros de longa distância pelo interior do Brasil. E há o
ferroviarista progressista que torce para que um dia se torne viável um trem de
alta velocidade por aqui. Este entende que, o quê poderá possibilitá-lo foi a
correta supressão daquele excesso de outros do passado. E há os que fazem um
rolo danado e querem as duas coisas ao mesmo tempo.
O ferroviarista mais admirado, mais otimista, mais sonhador, “projeta” rota de
linhas e sonha com a possibilidade de se construírem mais rotas e mais ramais
ferroviários. Acompanha pela imprensa, a construção (quando os há), de cada
quilometro de linha concluído, e sempre tem certeza de que é muito pouco. Porém,
só acredita que surgiu uma nova ferrovia, depois que, no mínimo, vê pela TV os
trens rodando (costuma ir ver de perto). Antes de ver não acredita. Tratores
ligados perto de montes de terra não o iludem. Não se deixa enganar.
Não há como medir ou reduzir a um só termo o “ferroviarismo” do ferroviarista.
Não existe uma escala. Pode-se apenas gostar de passar por perto de uma estação
e ver o movimento ferroviário, ou então, se ver a pegar ônibus, carona, trem,
avião, e sair em viagens demoradas, para ir a regiões remotas procurar
locomotivas “perdidas” ou vestígios de trilhos a muito enterrados no chão.
Resumindo: o ferroviarista passa parte da vida a procurar de alguma forma, não
se manter só ás margens da linha férrea. Ama o passado o presente e o futuro da
ferrovia. Não só encara este gosto como distração, mas sabe da importância do
transporte ferroviário. Por lerem nos jornais tudo sobre ferrovia, alguns leram
um dia (se esquecendo de anotar o autor da frase e mesmo o colunista que a
citou), alguma coisa assim: “O transporte ferroviário é a coluna de toda nação
organizada”. O ferroviarista fica então otimista, pois sabe que a tendência
(contra qualquer outra tendência) é o progresso. Sendo assim, sabe que há sempre
de se aumentar uma das visões que mais lhes alegra a alma (de ferroviário): A de
vias férreas e comboios ferroviários.
Carlos
Antonio Pinto